sábado, 24 de maio de 2008

MIRAGAIA – A lenda

Nota de Flávio Miragaia Perri:
Como toda lenda, esta traz um pouco de história e muito de ficção. O autor escreve numa linguagem difícil, mas curiosa. Francisco Antônio Dória, o autor, é um pesquisador português que estudou a história do Rei Ramiro, Rei de Leão [lembram-se de Leão e Castela, regiões mais espanholas que portuguesas?].
Por essa via, introduzo em nosso blog o poema popular MIRAGAIA cuja origem é a lenda do rei Ramiro. Durante o período literário que se denominou Romantismo ocorrido nas últimas décadas do século XVIII e princípios do século XIX, os autores foram buscar a história dos povos nos cantos e contos populares dos primeiros tempos.

----------Leiam um extrato do escrito de Francisco Antonio Doria:

“A Lenda do Rei Ramiro.
A lenda do rei Ramiro, ou lenda da Miragaia, ou lenda da família da Maia, conta a história das origens de uma família de infanções [nobres de baixa hierarquia]cujas terras situavam-se nos entornos do Porto. Foram os padroeiros do mosteiro de Santo Tirso de Ribadave, fundado em 978 pelo primeiro ancestral certo dessa família, um moçárabe (isto é, árabe cristianizado), Abunazar Lovesendes. Na lenda o infanção Abunazar torna-se no infante Dom Alboazar Ramires, filho, que não o foi, de Ramiro II, rei de Leão. A lenda é fascinante, porque Ramiro II (c. 900-951) foi rei de Portugal, entre 920 e 930, e depois de Leão, e é personagem atestadíssimo. E rei Aboali é, com certeza, Abdallah, emir de Córdova (844-912; ascendeu ao emirado em 888). O núcleo histórico da lenda do Rei Ramiro. A lenda do Rei Ramiro procura nos esclarecer sobre as origens da família da Maia, cujo primeiro ancestral documentado é certo Abunazar Lovesendes, fundador do mosteiro de Santo Tirso de Ribadave em 978. Segundo a lenda, a família da Maia descenderia do adultério de Ramiro com uma princesa moura: Abunazar ganha na lenda uma ascendência real, da mais alta nobreza, por seu pai e por sua mãe. Mas, notemos o seguinte: quando esta lenda se fixa por escrito nos livros de linhagens, o árabe é o inimigo subjugado. A conquista do Algarve fora feita nos fins do século XIII por Afonso III. A lenda conta uma ascendência ilustre dos senhores da Maia na família real do inimigo, inimigo político e religioso Numa família real que se aparentava ao próprio fundador da religião adversária. Ramiro II parece que entra na lenda como um contrapeso ideológico. Mas notemos que há vínculos indiretos, indícios que mostram vínculos, entre a família da Maia, em fins do século X, e a família do conde de Coimbra, Hermenegildo Guterres. Uma das filhas de Abunazar Lovesendes tem o nome Ausenda‹como a mulher repudiada de Ramiro II. Um dos filhos de Abunazar, de quem aliás descenderá outro personagem lendário português, Egas Moniz Aio, é Ermígio, forma rara do nome Hermenegildo O que aconteceu, na história, no concreto, nunca vamos saber certo. Mas o seguinte cenário parece explicar a narrativa lendária. Ausenda, rainha de Leão e mulher de Ramiro II, comete adultério. É, por isso, repudiada. (Não deve ter sido morta; sua família era poderosa demais.) Do filho adulterino, Lovesendo, que se casa com a filha de Zahadon, nasce Abunazar Lovesendes, primeiro senhor das terras da Maia. Razão da lenda.Para que a lenda? Para mascarar as origens adulterinas e heréticas de uma família que será tão poderosa. Cujos descendentes, muitissimamente numerosos hoje em dia, todos compartilham, inda que muito, muito longe, do sangue dos Omíadas e de seu parentesco ao Profeta do Islã.” ------------------------------------

Almeida Garrett [ romancista, poeta, político] foi um dos primeiros a propor uma estética romantica em Portugal. Sua vasta produção literária inclui o belíssimo poema MIRAGAIA cantado à época pela gente de aquém e além Douro, o norte de Portugal, cuja história muitos consideram estar na origem da formação do país. É lindo o poema de nosso nome:

TEXTO RESUMIDO à introdução e final, com eliminação portanto de todo o corpo principal [Para quem se interessar - e recomendo : busque todo o texto do poema, que é longo, no endereço

http://www.gutenberg.org/files/24411/24411-8.txt


MIRAGAIA


I

Noite escura tam formosa,
Linda noite sem luar,
As tuas estrellas de oiro
Quem n'as poderá contar!

Como as folhinhas do bosque,
Como as areias do mar...
Em tantas lettras se escreve
O que Deus mandou guardar.

Mas guai do homem que se fia
N'essas lettras decifrar!
Que a ler no livro de Deus
Nem anjo póde atinar.

Bem ledo está Dom Ramiro
Com sua dama a folgar;
Um perro bruxo judio
Foi causa de elle a roubar:

Disse-lhe que pelos astros
Bem lhe podia affirmar
Que Zahara, a flor da belleza,
Lhe devia de tocar.

E o rei veio de cilada
D'além do Doiro passar,
E furtou a linda moira,
A irman d'Alboazar.

A _Milhor_, que é terra sua
E está á beira do mar,
Se acolheu com sua dama,
Nem de mais sabe cuidar.

Chora a triste da rainha,
Não se póde consolar:
Deixá-la por [~u]a moira
Deixá-la com tal dezar!

E a noite é escura cerrada,
Noite negra sem luar,
Sosinha no seu balcão
Assim se estava a queixar:

--«Rei Ramiro, rei Ramiro,
Rei de muito mau pezar,
Em que te errei d'alma ou corpo,
Que fiz para tal penar?

«Diz que é formosa essa moira,
Que te soube infeitiçar...
Mas tu dizias-me d'antes
Que eu era bella sem par.

«Que é môça, na flor da vida...
Eu, se ainda bem sei contar,
Ha tres que tinha vinte annos,
Fi-los depois de casar.

«Diz que tem os olhos pretos.
D'estes que sabem mandar...
Os meus são azues, coitados!
Não sabem senão chorar.

«Zahara, que é flor, lhe chamam
A mim, Gaia... Que acertar!
Eu fiquei sem alegria,
A flor quem lh'a hade voltar?

LONGO TEXTO SUPRIMIDO



«Mataste o mais bello moiro,
Mais gentil, mais para amar
Que entre moiros e christãos
Nunca mais não terá par.

«Perguntas-me porque choro!..
Traidor rei, que heide eu chorar?
Que o não tenho nos meus braços,
Que a teu poder vim parar.

«Perguntaste-me o que miro!..
Traidor rei, que heide eu mirar?
As torres d'aquelle alcaçar
Que ainda estão a fumegar:

«Se eu fui alli tam ditosa,
Se alli soube o que era amar,
Se alli me fica alma e vida...
Traidor rei, que heide eu mirar?»

--«Pois _mira_, _Gaia!_» E, dizendo,
Da espada foi arrancar:
_«Mira_, _Gaia_, que esses olhos
Não terão mais que mirar.»

Foi-lhe a cabeça de um talho;
E com o pé, sem olhar,
Borda fóra impuxa o corpo...
O Doiro que os leve ao mar.

Do estranho caso inda agora
Memoria está a durar:
GAIA é o nome do castello
Que alli Gaia fez queimar;

E d'além Doiro, essa praia
Onde o barco ia a aproar
Quando bradou «Mira, Gaia!»
O rei que a vai degollar,

Ainda hoje está dizendo
Na tradição popular,
Que o nome tem--MIRAGAIA
D'aquelle fatal mirar.

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